terça-feira, 17 de setembro de 2013

Emmanuel Kant: das razões do “direito de resistência” dos Estados em dívida contra o sistema financeiro



A nossa situação de calamidade pública, que nos colocou na situação de assistência financeira, foi o fruto de múltiplos fatores, mas devo destacar sobretudo a desordem financeira da gestão pública, ao longo da última década, de que PS e PSD são os responsáveis, um conjunto de decisões no âmbito europeu que nos forem desfavoráveis e, finalmente, a desregulação do mercado financeiro.
Agora que a as contas públicas estão, de novo, a ser auditadas pela Troika, julgo vir a propósito um texto de Kant, seguido de comentário, que se destina a mostrar que as taxas de juro cobradas pelo empréstimo são incompatíveis com o relançamento da economia e o Estado Social, sendo especulativas, legitimando o direito de resistência do Estado e da sociedade civil. Embora a margem de sucesso da empresa seja curta, vale a pena o combate, pelas armas da razão persuasiva e as da ação resistente.

Eis o texto com comentário:
“Artigos Preliminares para a paz perpétua entre os Estados
(…) 4. Para fomentar a economia de um país (melhoria dos caminhos, novas colonizações, criação de depósitos para os anos maus de fornecimentos, etc.) fora ou dentro dos Estado, esta fonte de financiamento não levanta suspeitas.
 Mas o sistema de crédito, como instrumento/de oposição das potências entre si, é um sistema que cresce desmesuradamente e constitui sempre um poder financeiro para exigir no momento presente (pois certamente nem todos os credores o farão ao mesmo tempo) as dívidas garantidas – a engenhosa invenção de um povo de comerciantes neste século – a saber, é um tesouro para a guerra que supera os tesouros de todos os outros Estados tomados em conjunto e que só pode esgotar-se pela eminente queda dos impostos (que, no entanto, se manterão ainda durante muito tempo, graças à revitalização do comércio por meio da retroação deste sobre a indústria e a riqueza).
A facilidade para fazer a guerra, unida à tendência dos detentores do poder que parece ser congénita à natureza humana, é pois, um grande obstáculo pata a paz perpétua; para obstar a isso, deveria, com maior razão haver um artigo preliminar porque, no fim, a inevitável bancarrota do Estado deve implicar vários outros Estados sem culpa, o que seria uma lesão pública destes últimos. Por conseguinte, outros Estados têm o direito/a aliar-se contra semelhante Estado e as Suas pretensões.”

(cf. E. Kant, A paz Perpétua e outros Textos, Ed. 70, col. Textos Filosóficos, trad. de Artur Morão, Lisboa, 1989, pp. 122-123)
 
Comentário:
Kant, quando escreveu isto (1796) testemunhava já os efeitos deletérios que o sistema financeiro, colocado ao serviço da especulação em vez de instrumento do desenvolvimento económico, comportava como fator decisivo na deflagração das guerras.
Este tópico é consequente com o princípio do equilíbrio entre as Nações da Europa, que fora estatuído no tratado de Vestefália (1648) na intenção de prevenir as guerras. Por isso, a situação referida por Kant entra em rota de colisão com aquele princípio. E assim assiste aos Estados afetados o direito de coalisão contra o Estado prevaricador (“…outros Estados têm o direito/a aliar-se contra semelhante Estado e as suas pretensões”).
O opúsculo de filosofia política onde se encontra o ponto em análise visava estabelecer um conjunto de princípios, a constitucionalizar, que assegurassem o direito civil no âmbito do Estado, o direito que regula a relação dos Estados e o direito de âmbito cosmopolita, ligado à criação de um Estado Mundial.
Mas, a referência ao papel da especulação, conducente à bancarrota dos Estados, é um assunto que o texto destaca: “… para obstar a isso, deveria, com maior razão haver um artigo preliminar porque, no fim, a inevitável bancarrota do Estado deve implicar vários outros Estados sem culpa”. O que nos permite afirmar que Kant, já no seu tempo, era um crítico severo do sistema financeiro ao serviço da especulação. Se fosse vivo hoje, não toleraria o tipo de mundialização em curso, em que as guerras são ainda mais insidiosas e invisíveis. Mas não menos mortais!
O direito de resistência dos Estados lesados é assim legítimo, porque só ele pode fazer regredir esta causa determinante das guerras. Cada cidadão deve neste processo encontrar os modos da sua participação, que deve ser esclarecida, partilhada e eficaz.
Adenda: Kant foi um filósofo alemão (1724-1804), adepto do movimento das Luzes, que através da sua crítica se debruçou sobre os vários problemas inerentes à experiência humana. Assim, a sua teorização abrange os temas do conhecimento, da moral, da estética, da religião, do direito, da política, da cultura, da educação, fornecendo um horizonte filosófico muito vasto. Este é um legado impressionante, pela sua ousadia e rigor analítico, que obrigou os filósofos posteriores a tomá-lo muito a sério como uma fonte necessária para as suas indagações, prolongando-a ou recusando-a em alguns pontos. É um “maître à penser”, ainda hoje.
Quem não conheça, não perde o seu tempo. A Net tem imensos artigos sobre aspetos da sua obra, além de se encontrar em alemão uma parte significativa desta.  

Sem comentários:

Enviar um comentário